Camila Loredana, residente em infectologia no HC, com e sem a paramentação para lidar com pacientes gravíssimos de Covid-19Imagem: Arquivo Pessoal
Aos 26 anos e no início do segundo ano de residência em infectologia, a
médica Camila Loredana, filha de Dr.Juraci Bezerra e Celia Alves, vem desempenhado
uma função muito dura e importante neste delicado momento que atravessamos. Ela
trabalha em uma das UTIs do Hospital da Clínicas, em São Paulo, centro de
referência no país, integrando uma equipe dedicada a 13 leitos para pacientes
gravíssimos. No HC, há hoje 275 UTIs só para Covid-19.
Todos os dias são desafiadores — alguns mais que os outros. "O
final de semana passado foi bem difícil", conta Camila. "Tivemos
várias intercorrências, inclusive outras mortes. Mas o pior momento foi quando
dois pacientes tiveram parada cardíaca quase ao mesmo tempo
Camila lembra que ambos já estavam em uma condição muito grave. "A
gente tinha trabalhado a noite inteira lado a lado com eles, já era dia e
estávamos encerrando o nosso plantão. Quando vi [que o coração deles havia
parado], nem pensei: a primeira coisa foi pegar o capote e o avental e entrar
no leito para fazer o trabalho [as manobras para reanimar o paciente]. Quando a
gente está lá, está muito envolvido. Tentamos de tudo, mas eles foram a
óbito", conta com a voz embargada
"Toda equipe ficou muito abalada com a situação, todo mundo chorou.
A sensação é de impotência. É impossível não se emocionar, não se colocar no
lugar dos pacientes e dos familiares.
PEQUENAS CONQUISTAS SÃO CELEBRADAS.
Há também muitas lágrimas de alegria. As melhoras, até mesmo as
pequenas, são celebradas como vitórias. "Tenho uma paciente que virou
minha xodó, já está na UTI há mais de um mês e esteve muito grave. Ela tem 40 e
poucos anos, sem nenhum problema de saúde prévio", conta Camila.
"Depois de um tempo, o tubo [para a ventilação] começa a fazer mal
e o paciente tem que ser submetido a traqueostomia. Não acontece com todo
mundo, claro. No começo, a gente pensava, será que ela vai conseguir [passar
pela cirurgia]? Dia após dia, fomos conseguindo. Primeiro a traqueostomia deu
certo. Depois ela foi se recuperando", relata.
"Hoje ela me fez chorar. Ela está acordada e entende tudo. Fizemos
uma chamada de vídeo e a filha cantou um louvor", disse Camila, se
emocionando mais uma vez.
Hora para entrar, mas não para
sair
Há 30 dias na UTI de infectologia, a residente dá plantões de 12 horas
para 36 de descanso — que, na prática, são mais curtos, já que às vezes é
preciso cobrir colegas e ela eventualmente trabalha no hospital de campanha do
Pacaembu. "Temos horário para entrar, mas nem sempre para sair",
fala, com bom humor.
O turno pode ser diurno, começando às 7h, ou noturno, às 19h. Ao chegar,
ela tem que se paramentar para circular dentro da área comum da UTI: veste a
roupa privativa (o pijama do hospital), máscara N95 (aquela que protege contra
aerossóis) e touca. Depois, faz a visita aos pacientes, com os colegas do
plantão anterior, para saber o estado de cada um, as medicações e os procedimentos
adotados.
Em geral, essa conversa é feita do lado de fora do leito, que tem uma
porta de vidro. Caso necessite entrar, os médicos precisam vestir uma segunda
proteção, composta de um capote, avental e escudo facial. "Nós começamos a
ser treinados com antecedência, em fevereiro, para a paramentação. Somos
orientados a garantir a nossa proteção em primeiro lugar.
Chefe com Covid-19 expôs vulnerabilidade
Camila é aluna da médica
infectologista Ho Yeh Li, coordenadora da UTI de doenças infecciosas do HC,
que, entre outras coisas, foi a Wuhan resgatar brasileiros quando houve a
eclosão do novo coronavírus na China. No início de abril, Ho foi pega pela
doença. "Assustou, claro. É a nossa chefe, nossa professora, uma
referência pra gente. A principal preocupação foi que ela ficasse bem. Ela é
forte e sabíamos que ela ia voltar", diz a jovem.
"Nunca tinha parado para pensar que na profissão correria tantos
riscos. Não tinha medo de me expor, mas depois do coronavírus a ficha caiu.
Temos um grupo WhatsApp dos residentes de infectologia e um dia alguém sugeriu:
'Pessoal, vamos fazer uma lista com o nome completo de cada um e o número de
contato de um familiar para avisar em caso de emergência'. Isso me chocou.
Formada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ela nasceu em
Fronteiras, cidade de 11 mil habitantes no Piauí, e estudou no Crato, Ceará,
antes da faculdade em Natal. Com a doença avançando no Nordeste, Camila traçou
um plano de contingência para caso os seus pais desenvolvam sintomas: trazê-los
para São Paulo.
Para evitar colocá-lo em prática, ela proibiu que o pai, que é advogado,
e a mãe, professora, saiam de casa. A preocupação, claro, é recíproca e a mãe
costuma chorar quando conversa com a filha por videochamada. Em São Paulo,
Camila tem a companhia do noivo, também médico e que atua no hospital do
Pacaembu.
"Sempre gostei de trabalhar com paciente graves, aqueles que
precisam de cuidados intensivos. Sabia que passaria um tempo da formação dentro
da UTI, faz parte do trabalho do infectologista e nossa formação é muito
voltada para esse ambiente", explica
"Sempre gostei de trabalhar com paciente graves, aqueles que
precisam de cuidados intensivos. Sabia que passaria um tempo da formação dentro
da UTI, faz parte do trabalho do infectologista e nossa formação é muito
voltada para esse ambiente", explica.
O que ela não sabia é que esse estágio que, em geral, dura 45 dias nos
dois primeiros anos da residência poderia ser mais extenso — e, ainda por cima,
dentro de uma pandemia viral. Ela já está há um mês dando expediente na UTI e,
antes, passou pela enfermaria de Covid.
Pressão psicológica com perdas de pacientes
A história que mais marcou a médica aconteceu justamente quando ela
estava na enfermaria. "Era um paciente que piorava pouco a pouco. No dia
do aniversário dele, resolvemos comprar bolo e cantar parabéns, fizemos
videochamada com a família e foi muito.
lindo. Na noite seguinte, quando
cheguei para o plantão, ele teve uma piora significativa. Não tinha como não
intubá-lo", recorda
"Tive que explicar que teria que fazer o procedimento e ele não
queria. Dizia que morreria se fosse intubado. Fiquei duas horas para fazê-lo
entender a necessidade. Chorava com ele, foi muito difícil. Quando ele se
convenceu, pediu para segurar a minha mão e me fez prometer que voltaria a
recebê-lo naquele quarto. Mas não consegui trazê-lo de volta", contou, de
novo, com a voz embargada.
"Tive que explicar que teria que fazer o procedimento e ele não
queria. Dizia que morreria se fosse intubado. Fiquei duas horas para fazê-lo entender
a necessidade. Chorava com ele, foi muito difícil. Quando ele se convenceu,
pediu para segurar a minha mão e me fez prometer que voltaria a recebê-lo
naquele quarto. Mas não consegui trazê-lo de volta", contou, de novo, com
a voz embargada.
A pressão psicológica é grande e ela relata altos e baixos. "A
saúde mental é uma questão delicada. Temos todo o apoio aqui, mas realmente a
residência já é muito difícil e, vivendo isso, é ainda mais complicado. Já
passei por várias fases: chorar descontroladamente, pensar em desistir, ser otimista
e sentir que estou fazendo a diferença, salvando as pessoas."
E como ela se sente ao sair de um plantão e encontrar as ruas cheias de
pessoas que não estão respeitando o isolamento social? "Dói e me revolta.
Penso o quanto os pacientes gostariam de estar com suas famílias. Me faz
pensar: vale a pena?"
Mas, ao encerrar a conversa com Universa, Camila dá a resposta ao
lembrar o que a motivou a escolher a profissão. "Estou onde sempre sonhei
estar. Fazendo o bem para as pessoas, isso é muito recompensador, torna você
melhor como ser humano."